terça-feira, 8 de outubro de 2024

Hoje cada vez mais

 


Há 3 anos tive diagnóstico de câncer. 

O câncer é uma enfermidade grave, mas existem muitos mitos e muitos tabus sobre essa doença. Além disso, há milhares de tipos e subtipos de câncer, que se manifestam das mais diversas formas. Além disso, duas pessoas com o mesmo tipo e subtipo de câncer, idades, estilos de vida, tratamentos "iguais" podem ter uma experiência ou uma jornada totalmente diferente com a doença.

Acredito que quando alguma coisa tão "grandiosa" como um câncer, ou outra doença grave, ou alguma coisa muito séria acontece na vida de uma pessoa, ou de uma família... Ela vai ter um olhar mais atento para algumas coisas, vai estudar, vai pesquisar, e vai (numa determinada medida) conhecer mais sobre esse assunto, do que conhecia até então. Assim como vai passar por situações que nunca passou anteriormente.

Lembrei-me agora de uma frase de um texto que escrevi há alguns anos, que falava sobre "luto infantil"*. A frase dizia: "Apenas quem vive, conhece", no sentido de que tem condições, sentimentos, narrativas... Que não dá pra saber, não dá pra querer buscar, até que se viva, até que se passe, até que se precise lidar, conviver ou enfrentar uma situação.

Tem algumas coisas sobre as quais posso falar, sobre as quais aprendi, para as quais tenho uma sensibilidade maior, sobre as quais tenho informações, sobre as quais tenho atenção e preocupações, porquê convivo com o câncer hoje. Vivo isso na minha própria pele... E ainda assim, como falei, pode ser que alguém que vivencie o mesmo câncer com o qual eu convivo, não consiga dizer, saber ou sentir da minha experiência, e vice-versa, por mais que haja aproximações e familiaridades.

 Digo tudo isso... Pra chegar no prato de comida da foto - E querendo chegar de uma "forma resumida"! Mas essa versão ("resumida") não é para me preservar, através de uma superficialidade, embora eu tenha um certo medo que se cansem de mim - Confesso. Contudo, uma certa objetividade numa segunda parte do texto, é justamente pra exaltar alguns pontos ou verdades, que são fortes, que merecem ser compreendidos, sem ser engolidos por tantos outros elementos, que são humanos; Não sei se Nietzsche sabia a dimensão do significado de quando ele disse que era: "Humano, demasiadamente humano", provocando diversas gerações a sê-lo também.

Durante esses 3 anos, desde que descobri o câncer, num determinado momento passei a sentir uma dor do lado esquerdo, na região inferior do abdômen. Inicialmente, não era uma dor constante, ela era muito forte e predominante no período da noite - curiosamente. E apesar de muito intensa, esses episódios de dor não eram os mais fortes que eu já tinha sentido nessa trajetória com câncer.

Eu vivi um período de muita dor, em decorrência do tumor cancerígeno primário - Quando ainda não havia o diagnóstico de câncer. Era a dor proveniente de um câncer propriamente dito, e eu acredito que esse tipo de dor eu nunca mais vou sentir na vida, e não sei como pude suportar. Lembro-me que um dia relatando pra minha mãe o tamanho da dor, ela falou: "Da forma como tu fala, parece até a dor que as pessoas relatam de câncer". E na verdade era... Mas a gente não sabia. Veja, como na maior parte das vezes, o inconsciente já tem a resposta.

Mas, voltando às dores que vieram após essas: A minha oncologista disse várias vezes que não havia alterações nas tomografias, e nem em outros exames. Fiz, a pedido dela, uma colonoscopia, e os exames não traziam alterações - O que por um lado era um alívio também, saber que não tinha nenhum outro tumor, ou um novo foco de câncer. Porém, as crises agudas de dores continuavam. Digo, agudas, por que eu sentia quando essas dores estavam por vir: Um mal-estar ia se formando e deflagrava numa dor enorme, no fundo da barriga. Essas dores, que chamei de "crises" pareciam durar uma eternidade, mas duravam em torno de 10 ou 15 min - algumas vezes da noite, menos vezes durante o dia. Às vezes eu estava na sala vendo tv com minha mãe e saía correndo para o meu quarto, pra ficar "quietinha" - quase imóvel, até que a dor passasse. Alguns nefrologistas, da clínica de hemodiálise que frequento, aos quais, em alguns momentos, me queixei muito mais dessa dor, me examinaram, tentaram me ajudar, pareciam realmente preocupados, mas não obtive uma resposta "efetiva". Como uma tentativa de melhorar, de manter uma qualidade de vida, com o conhecimento da oncologista, dos nefrologistas, da minha família... Comecei a utilizar "paco" (é um remédio que está na cadeia dos mais potentes pra dor), combinado com 2 comprimidos simples pra dor, de 4 em 4 horas, ou de 6 em 6 horas, e eventualmente inseria comprimidos de ciclobenzaprina. Segui com esses medicamentos regularmente por meses, de maneira que à medida que as dores ficaram mais esparsas, fui diminuindo os comprimidos. Um dia me vi  sem nenhum comprimido e sem nenhuma dor. Parecia magia, milagre, enfim, estava muito grata novamente pela vida, por uma vida razoavelmente sustentável, por não ter entrado num estado ainda mais grave ou de depreciação.

Fiquei bem e tranquila por bastante tempo, por vários meses mesmo! Nesse período retornei à quimioterapia, ao meu trabalho no serviço público, a coordenar alguns projetos e supervisões, viagens breves, lazer, a elaborar alguns cursos e etc.

E então, as dores voltaram, em maio desse 2024! 

Como de costume, da minha personalidade, inicialmente eu não me "assustei" porquê elas não retornaram muito intensas. Elas voltaram "devagarzinho". Eram incômodas, mas não machucavam tanto, e assim foram se acomodando, como inimigas íntimas. Talvez, por um mecanismo de defesa, eu não tenha encarado-as da forma como deveria, no momento que deveria. 

Eu nunca digo que "tenho uma doença", ou que "estou doente", ou que "sou doente", ou "meu câncer", ou que "tenho câncer", ou que sou "uma renal", entre vários outros diagnósticos, ou qualificações que apenas estigmatizam as pessoas. 

Mas quando essas dores voltam e se instalam com tanta potência e voracidade, eu não posso negá-las, eu não posso negar que algo em mim "não está funcionando bem", e que isso faz parte de um processo de adoecimento, de sentir dor, de sentir a dor. Somos dialéticas, dialéticos. Se por um lado há aqui uma Thereza Erika que escreve, que deseja, que dá gargalhada, que se relaciona, que adora montar “looks”, maquiagem, fazer unhas, enfim, eu vivo... Também há um lado que sente dor na carne, e na alma.

Quando as dores voltaram tentei usar os mesmos medicamentos da outra vez. Não funcionou. E isso coincidiu com um momento onde a tomografia me trouxe notícias ruins dos tumores metásticos do pulmão: Eles haviam crescido aceleradamente de março para julho. 

Essa consulta com a médica e os resultados dessa tomografia recebi 1 dia antes do meu aniversário desse ano (Nasci em 20/07). Naquele dia senti-me muito desamparada pela minha médica. E acredito que não foi apenas um "sentir", ela me desamparou. Tanto que disse: "Vou solicitar a quimio pra você, mas se não der certo, se continuar crescendo dessa forma, não tem mais o que fazer...". Bem naqueles dias eu estava assistindo uma série sobre cuidados paliativos, mas independente da série, eu já sabia que isso não é o tipo de coisa que se diz para alguém. E também aconteceu num período no qual eu tinha voltado a fazer pesquisas sobre o sarcoma, que é o tipo de câncer que me acometeu (Não o que eu tenho rs), e também a conhecer pessoas e profissionais dessa área. Naquele dia saí da sala dela de um jeito que nunca deveríamos sair, após estar com alguém que teoricamente cuida da gente.

Porém, antes mesmo desta consulta médica eu já tinha decidido que não faria quimioterapia no mês de agosto. Foi uma escolha muito consciente. Até então, eu tinha cumprido todos os protocolos da quimio, compareci tranquilamente para todas as sessões, e o motivo para me ausentar em agosto foi me dar conta que eu estava muito frágil fisicamente, e que meu corpo não iria suportar sessões naquele mês. 

Em agosto havia solicitado férias da prefeitura, onde retornei ao trabalho em janeiro desse ano, oferecendo psicoterapia para colegas servidores, por meio on-line, devidamente encaminhados pelo setor de perícia/saúde do trabalhador. Desde que retornei em janeiro, não precisei entrar com nenhum atestado; Nesse cargo o meu foco é o atendimento dos pacientes, a formulação de cada caso terapeuticamente. Estou bem feliz com meu trabalho, e entusiasmada por integrar um novo setor e desenvolver um trabalho inovador, que impacta ou pode impactar de uma forma interessante a vida das pessoas.

Nesse meio tempo também:... Os nefrologistas da Hemodiálise, sempre tentando me ajudar! Lá fui eu novamente me queixar das minhas dores abdominais, e daí consegui observar algo importante: Que eu sentia dores quando me alimentava, sendo muito difícil identificar que alimentos poderiam causar essas dores. Constatei também que algumas dores apareciam assim que eu me alimentava, mas às vezes elas apareciam 1 hora e meia, 2 horas depois. Um dia fui conversar com um nefro que nunca havia me consultado. Jovem, dócil, ao mesmo tempo sério, foi quem mais dedicou tempo ao meu caso. Destacou a necessidade de se fazer alguns exames, e levantou a hipótese de diverticulite. Era apenas uma hipótese, mas acho que tanto eu quanto ele desejamos muito que estivesse certo. Diverticulite é uma inflamação nos divertículos, que são pequenas bolsas que surgem no interior do intestino. Em casos graves, os divertículos podem obstruir a passagem no órgão, sendo necessária uma cirurgia de urgência. O quadro causa dores terríveis.

O médico prescreveu analgésico e dipirona pra usar durante a dor, mas enfatizou que eu fizesse dieta líquida de 3 a 5 dias, passasse à pastosa e depois buscasse ingerir alimentos com fibras. Apenas pão integral, biscoito integral. Muitas frutas, muitas frutas, ele repetiu isso. Finalizou dizendo que depois de alguns dias eu o procurasse pra saber se melhorei. Ele parecia tão convicto, então fiquei esperançosa... Por que eu estava piorando muito... Falei no grupo da família qual era a hipótese e as orientações do médico.

Minha irmã me perguntou que frutas eu gostava. Eu acho que estávamos todas tão “desnorteadas”, que em princípio me pareceu uma pergunta comum, convergente com a orientação que o médico deu sobre comer muitas frutas. Depois, minha mãe me contou que ela já tinha enviado mensagem no privado dela perguntando quais eram as frutas de minha preferência. Naquela ocasião, que contei da consulta com o nefro, no grupo do whats da família, eram umas 20 h. Quando cheguei em casa, em torno de 1 hora e meia depois, a cozinha estava cheia de frutas. Minha irmã saiu da casa dela, naquela hora da noite, pra comprar as frutas pra mim. Minha irmã é realmente uma pessoa proativa, mas, principalmente, desde que descobri o câncer, ela se posicionou no sentido de me ajudar a sobreviver e atravessar essa doença da “melhor” forma possível. O câncer afeta quem vive e quem está perto.

Nesta semana das "frutas, muitas frutas" preparar caldos e sucos tão naturais e suaves era um tanto lúdico, divertido... E apesar de termos muito humor: Eu, minha irmã e minha mãe, de repente foi me parecendo que não se tratava de uma diverticulite. 

Mesmo com dieta líquida, sucos naturais, com a restrição de leites, ovos, gorduras, alguns pães, frituras, na verdade – Quase tudo –, as dores permaneciam e estavam insidiosas e cada vez mais frequentes.

Posso dizer que a “principal” dor era na região do baixo abdômen, no lado esquerdo. Entre os meses de maio e setembro elas cresceram gradativamente, aumentando muito a partir da última semana de agosto. A partir daí já não eram mais frequentes apenas à noite; As crises – ainda que sempre intensas – não perduravam mais por 10 a 15 minutos, em episódios isolados. Chegou um tempo que elas pareciam estar sempre presentes. Por um período eu conseguia comer mais alimentos, alguns até inesperados, como: Caldo de feijoada, patê de atum com maionese, leite com chocolate em pó e etc. Mas comer se tornou uma “experimentação”, afinal eu nunca sabia como meu corpo iria reagir, mas a experiência foi muito mais dolorosa, do que agradável. Comer se tornou praticamente sinônimo de dor naquele momento, e eu precisei escolher entre me alimentar, me nutrir, ou.... Sentir dor. Pode parecer uma escolha óbvia, mas garanto-lhes: Não era; Às vezes porquê eu sentia fome, e em alguns momentos eu ficava a pensar se a dor na barriga também não era fome. Às vezes eu queria um prazer que a comida me proporcionava. Então, eu refletia que na jornada com o câncer, já tinha perdido algumas coisas que eram fonte de prazer para mim; Iria perder também a comida, a mordida, a sedução (a comida pode nos seduzir), os encontros, as celebrações – Nas quais comidas e bebidas não são meros coadjuvantes? Porém, sinto que conseguia lidar com essa questão da perda, do desprazer. Talvez tenha sido aí um momento muito profundo de aceitação, de resiliência, de resistência. Daí, me vi numa condição de “passar fome”, de “sentir fome”. Não era por uma situação de privação material, pela falta de alimentos, ou de quem cozinhasse. Eu não tenho certeza se mesmo neste tipo de circunstância é possível falar em “fome”, se é possível falar em ausência de dignidade. A condição chegou a tal ponto que – de tanta fome, tanta escassez de comida, de nutrição... – Eu passei a não sentir mais fome. Na realidade, nem sei como sobrevivi! Mas é sobreviver que nos confere o “título” de sobreviventes... Por que eu precisava me alimentar: Uma das coisas é que desenvolvi uma insuficiência renal, em virtude do tratamento de câncer. Como forma de tratamento, realizo hemodiálise, e uma das necessidades para se tolerar um tratamento de hemodiálise é alimentar-se bem. Alguns pacientes chegam a passar mal durante a sessão de hemodiálise, quando não estão devidamente alimentados. Eu, particularmente, tenho uma tendência muito grande a ter pressão baixa. Então, não me alimentar adequadamente era perigoso pra mim, nesse aspecto. Mas, eu me lembrei sim dessa questão, contudo não pude ter uma ação direcionada para esse problema. Simplesmente fui para as sessões de hemodiálise, com dor, com fome – E consegui não passar mal. Aliás, na “hemo”, como costumo carinhosamente chamar, é servido um lanche: Suco ou chá, pão francês com presunto e queijo, e um pedaço de bolo simples, mas que tem algumas variações (chocolate, fubá, maracujá). Normalmente, não como o pão. Há colegas que pedem doação dos pães daqueles que não comem Rs. Mas curiosamente, neste que chamo às vezes de “calvário”, eu conseguia tomar o chá e o bolo. Eles não me causavam dor. Creio que seja a receita especial do bolo: Sem leite, sem manteiga, sem ovos rs... Ou apenas algo como que Shakespeare resumiu pra nós quando disse: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia.”

De meados para o final de setembro de 2024 eu não conseguia comer praticamente nada. Minhas refeições se resumiam a: Café preto, caldo de feijão com caldo de carne (totalmente coados. A caldo de carne era natural), nos quais eu acrescentava orégano (considerada a erva da riqueza), banana, kiwi, suco industrializado, o mais gelado possível. Em 5 dias emagreci 9 kg numa ocasião, pois sempre faço pesagem na hemodiálise.

Esse período, principalmente em julho, agosto, setembro, foi marcado por outras dores – além das abdominais. Tenho a impressão que a dor abdominal, de alguma forma irradiou-se para a região da virilha e da perna esquerda. A dor se tornou tão intensa aí, que a certa altura achei que precisaria de cadeira de rodas para me locomover – na clínica de hemodiálise, por exemplo. Pela manhã, eu me aproximava do fogão pra esquentar o café, antes de começar a atender, e eu não conseguia ficar em pé por muito tempo. Falo sempre em “sustentar”, em sustentar o desejo de fazer terapia, de sustentar o desejo em várias coisas... E de repente eu me vejo sem conseguir sustentar o meu corpo. As dores eram no abdômen (um lugar inequívoco de onde são depositadas algumas de minhas fragilidades), na perna, nas costas, no braço. Às vezes o peito apertava. Tinha náuseas. Vomitava também.

E qual era o plano? Concluir o mês de setembro. Pra mim, atender todos os meus pacientes até o final desse mês: - Não sei. É ininteligível, não é?... Alguma ideia imatura, mágica, de que haveria responsabilidades, uma “missão a ser cumprida”... Talvez que eu não “abandonasse” a única coisa que sentia que eu tivesse, que era o meu trabalho. Eu nunca quis, e não quero que meus pacientes se preocupem comigo (Embora, se importar com o outro, seja um sinal de maturidade emocional), e também nunca quis que eles deixassem de fazer terapia... Por isso, apesar de escrever, e gostar de contar as minhas histórias, e outras (que possam ser contadas)... Evito falar sobre o câncer publicamente; A Psicanálise preconiza isso quando ela fala do cuidado que há de se ter com a transferência. Estou redigindo esse texto, e eu senti de fazer a leitura dele, que acontecerá dia 10/10/24... E também acho que o câncer – O câncer que me acometeu.... – Não precisa ser um tabu, meus pacientes são livres para falarem e sentirem o que quiserem sobre ele na terapia - mas que seja por eles, não por mim, afinal, como diz a psicanalista Vera Iaconelli: “A minha história eu conto pra minha analista”. Na terapia deles, eles contam a história deles, e como eles se sentem sobre ter uma terapeuta que convive com câncer, e porquê dessa escolha.

Felizmente, não consegui “fechar setembro”. Impedida de comer, obviamente passei dias sem dormir também (Mas literalmente sem dormir), com dores insuportáveis por todas as partes do meu corpo: Ultimamente “insuportável” e “insustentável” têm tido significados muito parecidos pra mim... Precisei desmarcar os últimos atendimentos do mês, nos dias 26 e 27/09, mas compareci ao hospital na sexta-feira 27/09, muito com a questão psicanalítica ou terapêutica que precisamos formular pra vida: “No que me implico?”. Ou seja, “O que faço diante disso que a vida me apresenta?”. E era a alternativa que eu tinha até então. Arrumei as minhas coisas, com a convicção de que precisaria me internar. Dessa vez eu até achava que iria morrer. Acho que fantasia e realidade se misturam e sempre penso que vou morrer, se for para o hospital. Deixei alguns lembretes pra minha mãe e pra minha irmã, sendo um deles onde elas deviam jogar minhas cinzas da cremação. Eu ainda não tinha falado sobre isso. Mesmo tendo uma lista com 200 músicas que gosto, pra tocar na cremação, ainda indiquei algumas que estavam “faltando”. Escrevi uma carta breve para o meu filho... Mas acredito que eu vá ter tempo pra escrever uma maior pra ele... Ou, melhor, eu já esteja escrevendo, desde antes dele nascer. Minhas orientações, meus desejos... É a vivência, é a história que estamos construindo juntos.

Cheguei no hospital, e toda essa dor que relato aqui foi ignorada. O profissional queria que eu retornasse pra casa com todas as dores que eu tinha chegado até ali. E eu repetia: “Estou há praticamente 1 mês sem comer”, e aquilo não tinha significado. Felizmente às vezes existe uma coisa chamada “troca de plantão”, que faz com que algumas pessoas “sumam” da nossa frente.

Estudo tanto os “bebês”, através de Winnicott, Klein, Ferenczi, Françoise Dolto e outros grandes teóricos psicanalistas. Então, naquele quase final de tarde comecei a chorar. Não era nada neurótico, não! Senti-me com uma bebê. Eu só estava chorando, porquê eu precisava apenas do básico: Comer, dormir, me sentir confortável, sem dor... Mas que também não era morrer! Comecei a chorar chorar chorar!!! A enfermeira, e a médica vieram, conversaram rapidamente comigo, acredito que compreenderam a minha dor. Foi aplicada morfina, e outros medicamentos também. Morfina, droga que se usa para aplacar dores em guerras. Em alguns momentos, o enfrentamento ao câncer se constitui numa verdadeira guerra... Eu só havia tomado morfina em uma outra ocasião, quando estive internada na UTI, em Tangará da Serra – MT, em janeiro de 2022, fazia muito tempo.

Em pouco menos de 10 minutos, eu não sentia qualquer dor no meu corpo. A mesma medicação (numa dosagem 3 vezes menor) foi prescrita para tomar em casa, e estou em uso. Algumas providências importantes precisam ser tomadas ainda, no sentido da investigação mais séria, profunda, sobre essa dor. Mas por ora, eu tive um alívio, uma paz - que eu estava merecendo. No dia 28/09/24, sábado, pude fazer alguns atendimentos. Minha vida caminhou, segue aqui. Eu não precisei me internar. Momentos tristes não se revelaram depois dali.

Durante vários meses, eu quis comer muitas coisas, mas principalmente churrasco. Eu adoro maionese de batata, na verdade eu adoro todos os acompanhamentos dessa comida tão brasileira! Domingo, dia 06/10/24, dia de eleições... Domingo é um dia especial, eu nasci num domingo! No domingo minha mãe preparou tudo isso, todos os acompanhamentos, apenas os assados foram encomendados.

Foi muito significativo poder comer esse prato de comida, e eu quis compartilhar essa história com vocês.

Prazer, sabor, misturas, energia, força, nutrientes, o encontro, levantar a taça e desejar algo (que é quando escolhemos o tema de um brinde), brindar!... Sempre tiveram valor pra mim, e hoje cada vez mais.

A liberdade, uma das virtudes que mais aprecio, está em poder escolher o quê comer, mastigar, engolir, e ter consciência sobre o quanto isso se trata de uma preciosidade. A liberdade está também em ser uma pessoa livre, de uma forma tão profunda, que nenhuma situação de fragilidade te aprisione numa condição de medo, tristeza ou desvalor.


Thereza Erika, 08/10/24.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Sequência de setembro/september dump

Já escrevi numa de minhas poesias: "Em um dia cabem muitos dias". Sobre setembro eu poderia dizer: "Neste setembro cabem muitos setembros". Sim, há muita diversidade em vinte e quatro horas. 

Porém, há uma marca nesse mês nove de 2024. Ele foi de muita dor física. 

Tenho convivido com alguns desconfortos há bastante tempo, mas houve períodos longos de bem-estar, até que, desde maio desse ano, várias dores chegaram e fizeram morada gradativamente.

Num período anterior, a oncologista que me acompanha chegou a dizer que não havia nos meus exames de imagem ou laboratoriais justificativas para as dores.

As dores desaguaram, "desembarcaram", me atacaram!... Em agosto eu havia saído de férias da prefeitura. Na última semana de férias, fiquei péssima!

Esta primeira foto é de um dia à noite, início de noite, começo de setembro, após o término dos atendimentos. É certo que se tratava de uma fotografia após um dia de trabalho, mas já é possível notar que não estou bem, há um abatimento e um emagrecimento do rosto.

Eu sentia dores abdominais fortíssimas do lado esquerdo. As "crises" começaram a ficar frequentes e prolongadas. O abdômen, principalmente do lado esquerdo, ficava inchado e parecia que ia explodir! 

Quando eu percebia a dor "chegar" ficava em posição fetal, encolhia-me o máximo, ficava bem "quetinha", com um travesseiro ou algo bem fofinho contra a barriga, quem sabe como forma de "despistar" algum "inimigo" implacável.

A dor, do abdômen, acredito que irradiou para a virilha e para perna esquerda. Eu também sentia fortes dores nas costas e nos ombros. Eu estava com muitas dificuldades para andar. Cheguei a mancar por alguns dias. Não conseguia ficar em pé por muito tempo, para aguardar o café esquentar no fogão. Precisava sentar para esperar. Estava vendo tudo aquilo acontecer comigo e fiquei com medo.

Os remédios que minimizavam a dor já não faziam mais efeitos.

Após a cirurgia oncológica, em 2021, desenvolvi um quadro de insuficiência renal. Desse modo, faço hemodiálise e frequento uma clínica especializada 3 vezes na semana. Os médicos tentaram me ajudar. Levantaram hipóteses e prescreveram medicamentos: Analgésicos, antibióticos, anti-inflamatórios, dietas líquidas e dietas restritivas, pois percebemos que o intestino, as dores naquela área, tinham uma grande sensibilidade à alimentação. Então, em princípio, eu conseguia comer alguns alimentos: Pão integral, biscoito integral, café, frutas - com exceção das ácidas, pão branco bem simples... Nada de manteiga, maionese, leite, ovos, carne, condimentos etc. Por um tempo fiz bastante dieta líquida: Caldo de feijão com caldo de carne (nada sólido), uma pitada de sal, com um pouco de limão (adoro acidez). Esse era um momento prazeroso pra mim. Algumas vezes, minha mãe passou horas preparando caldos de legumes para mim. Reclamou de certa vez ter estragado, por eu não ter comido à noite; Mas à verdade é que eu não tinha forças para levantar e preparar a comida.

Precisava ser muito cuidadosa com o horário e com o quê comia, para não ter crises enquanto eu trabalhava.

De repente, aquelas mínimas coisas que eu poderia comer, passaram a ser "nocivas" também. Eu comia e sentia dor.

Um dia, na ânsia de sentir algum prazer com o alimento, servi um prato com caldo de feijão, com caldo de carne, uma pitada de sal, um pouco de limão, orégano, um fio de azeite, um pouco de catchup, pimenta moída na hora e pimenta ao molho. Misturei tudo aquilo e bebi, sem que ninguém visse. O resultado não é difícil de imaginar. Imediatamente passei muito mal, e confessei a minha mãe que tinha enfiado um monte de pimenta no caldo.

Neste momento, onde todas as comidas se tornaram da seara do "impossível", havia algo que eu conseguia comer: Trata-se desse bolo dentro de um saquinho e um chá, na fotografia. Eles são servidos no lanche da hemodiálise, e sei lá porquê, não me causavam dor. Por alguns dias, foi isso que me sustentou. 

Teve um período, que em 5 dias perdi 9 kg. Meu sono foi diminuindo cada vez mais. Meu ritual era assistir até umas 2 ou 3 da madrugada "Criminal Minds", uma série que gosto bastante, e estou na 13° temporada.

Porém, em algum ponto, eu já não conseguia mais dormir - Momento em que as coisas ficarem bem difíceis.

A essa altura, eu já havia desenvolvido uma maneira para viver, temporariamente.


Eu estava sofrendo bastante nesse setembro, mas às vezes sorrindo também, brincando com a minha sobrinha, estudando, rindo das cadeiradas e dos políticos... E pensando e chorando muito por causa de comida... Imaginava um churrasco completo, uma picanha com gordura, maionese de batata, purê de batata, empadão da Carol com pimenta, goiabada e um monte de outras coisas. Até o que era leve queimava-me, machucava-me. Eu não tinha energia, eu não tinha forças, então quando não estava atendendo, estava deitada, tentando descansar, tentando encontrar algum alento. Também não conseguia sair, para ir em alguns lugares... Café, shopping, cinema, almoçar fora, e o calor e a fumaça se tornou um empecilho até mesmo para ir aos lugares que precisava. Eu me sentia como uma boneca, um boneco que se quebra e isso é irremediável.


Ir ao hospital parecia inevitável. Minha mãe falava sobre isso, como diz sempre, mesmo sabendo da minha resistência, da minha ojeriza. 

Minha analista, que sempre fala com delicadeza - E que simplesmente trabalha num hospital há "1000" anos - Ponderava, mas parecia compreender.

Meu plano era finalizar o mês, atender todos os meus pacientes até a última semana de setembro, e então ir para o hospital... Pois nunca se sabe o que vai acontecer quando adentramos num hospital.

Não dormi, não comi - Levantei cedo? Rs. Comecei arrumar minhas coisas, e um dos "insights" que tive é que não gosto de ir para o hospital porquê penso que não vou sair de lá viva.

Antes de ir, dei orientações pra minha mãe e irmã sobre meus desejos, caso eu morra: A playlist pra tocar na minha cremação, a praia pra jogar minhas cinzas, além de escrever uma carta para Fellipe.

Pra família apenas a frase: "Bom estar com vocês amiguinhos!"

Para finalizar... Chegando na emergência do Hospital de Câncer, o médico me atendeu mal e me prescreveu uma medicação que nunca amenizou qualquer uma das minhas dores. Falei.

Estava muito desesperançosa e desesperada de voltar pra casa do mesmo jeito, com a mesma dor.

Poucos minutos antes havia tido uma troca de plantão.

Em meio aos meus sentimentos... Durante esse mês de setembro eu quis ler o livro de Jó, que eu nunca tinha lido... E há muitos anos ele foi interpretado pelo grande ator Matheus Nachtergaele no teatro. E foi importante pra mim essa leitura. Em mais este processo escolho resistir, com serenidade.

Naquele instante, emergência vazia, sala fria... Começo a chorar chorar chorar... Como um bebê eu acho! A enfermeira que havia acabado de pegar o plantão vem, assustada com meu choro, e não precisa me ouvir por muito tempo, pra saber o que fazer.

A médica vem também. Escuta-me, compreende minha história e dor. Remédios são aplicados, e em menos de 10 min minhas dores cessaram, pois se tratava de um medicamento potente.

Medicamento na medida de um cuidado paliativo, não porquê se vá morrer, mas porquê precisamos viver com dignidade.


Fiquei tão feliz de poder ir andando um pequeno trecho até a farmácia, de conseguir dormir, de conseguir comer

Sábado de manhã piquei um pedacinho de cebola pra fazer com ovo mexido e tomar com café com leite.

Desde que vim para Campo Grande, minha mãe lava todas as minhas roupas; Hoje precisava de algumas para trabalhar e eu mesma lavei, pois não tenho qualquer dor em meu corpo.

Cuidados ainda são necessários, com todo processo de recuperação, mas estou muito grata com tudo o quê o amanhã me trouxe! Com tudo que a vida me traz!


Thereza Erika, 30/09/24 - 01/10/24.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

CONVITES

Já faz uns 10 anos que uma pessoa comentou comigo que ficava muito chateada quando alguém que conhecia não lhe chamava para um evento ou para uma festa (fosse a de aniversário da (o) filho). Na época, embora tivesse compreendido o sentido do que dizia, não deixei de considerar bobo, desproporcional, engraçado.

A lembrança desta conversa algumas vezes retornou-me ao pensamento e à fala - para usar como exemplo. Com o passar do tempo a importância de "ser convidada (o)" foi ganhando cada vez mais sentido.

Dias atrás cheguei num restaurante, à noite, e encontrei pessoa conhecida, que estava só. Convidou-me para sentar com ela e jantamos e conversamos bastante. Saí de lá com outro convite.

Pra tomar shake e chás desintoxicantes num espaço que frequenta. Gostei da ideia, gostei do convite.

Novamente lembrei da conversa de 10 anos com a executiva. Da importância de se receber convites. Quando alguém lhe convida pra algo é porque estima sua companhia, deseja sua presença, quer compartilhar um tempo de vida com você.

Amizades têm  a ver com convites (Aliás, tudo na vida tem a ver com convites, reflita). Algumas pessoas reclamam sobre não ter amigos, porém "ter amigos" relaciona-se muito com saber "ser amigo", com se aproximar, acordar, incluir, oferecer - convidar. A amizade se estabelece de um convite à praça, à casa... ao coração, à intimidade. Faça convites, seja amigo e certamente terá alguns amigos.

Não nos damos conta, mas recebemos muitos convites ao longo da vida... Nem todos bons... - Nossa mãe provavelmente nos estendeu os braços convidando-nos aos primeiros passos... A partir daí caminhamos para tantos abraços, tantas investidas...

Quais são os convites que recebe? Quantos convites recebe por dia? Por semana?
Convites para um chá, para uma festa, um churrasco, um jantar, para tomar um vinho, um sorvete, uma visita no motel, uma caminhada, uma pedalada, um banho de piscina, um banho de mar, para o Reveillon, um aniversário, uma formatura, um casamento, um acampamento, para um beijo, um sexo rápido, um romance inseguro, um amor profundo, para ouvir uma música, para fazer um curso, para ver a lua, para ver o sol, para uma nova empreitada de trabalho, para fazer dinheiro, para ir ao zoológico, ao parque, ao teatro, para uma viagem, para um show, para rodar o mundo.

- Para que te convidam?

- Você, quantos convites faz? Quanto dispõe de si? Generosamente, gentilmente...? Quanto abre a casa? Entrega a alma? Quanto do teu caminho alarga? Quantos faz companheiros na tua jornada?

Responda-me:
Está preparado (a) para os convites da vida?

Se estiver, então vamos!

P.S.: A todos que já me convidaram pra tantas coisas boas na vida, obrigada. Eu adoro ser convidada!

29/02/2016

SiGNIFICADO

Tantas teorias
Que as pessoas inventam
Ao invés
De dizerem
Simplesmente
Que não se importam.

31/03/2016

NÓS MESMOS

Um paciente* disse ter se lembrado de algo que falei tempos atrás e pegou-se sorrindo sozinho.

Esse paciente é homossexual e inicialmente trouxe para a psicoterapia seu sofrimento e seus conflitos relacionados ao fato de assumir ou não sua homossexualidade. A reação e o julgamento da família e da sociedade o atemorizavam, ainda que não tivesse vivenciado sua sexualidade.

A partir do contexto desta história, foi que o paciente relembrou com semblante aberto, alegre:

"(...) Numa das sessões eu quis falar de sexualidade (...) Eu nunca tinha beijado, dado um beijo, feito sexo e tudo mais (...) aí você falou: Mas você está muito devagar!!!"

Sorrimos muito (...) na sessão ao relembrar, pois o clima era de humor. Não recordo exatamente de ter falado, mas certamente falei. Ponderei com ele em tom humorado:

"Será que foi a Thereza ou a psicóloga que falou?!"...

Nessa mesma sessão abordou também um filme nacional que viu recentemente: "Hoje eu não quero voltar sozinho". Tirou o notebook da mochila para mostrar a cena que mais gostou: ...uma sequência que trazia o beijo de dois garotos. Disse-me:

"Não é pelo beijo, é uma cena bonita."

Vi ali um grande avanço do paciente. Conseguiu sentir-se muito alegre pela cena romântica de um filme, que retratou sua realidade, seus sentimentos, suas necessidades, seus sonhos. Viu-se no filme e relatou na terapia.

Sorriu porque sentiu-se "ele mesmo"... Porque por mais que doa às vezes, a gente é mais feliz quando é a gente mesmo;

E temos esse direito.

13/04/2016
* Relato autorizado
#direitosiguais
#abaixoahomofobia

QUALQUER DESATINO

Uma das coisas mais dolorosas
Pra nós
É ferir quem a gente ama,
Mas a gente faz isso.

Faz parte do amor
Essa licença,
Essa dose de dor,
E de terror!

Quando não é silêncio,
É escândalo.
Quando não é medo,
É abandono.
Quando não é discordância,
É desprezo.
Quando não é traição
- Ou qualquer tipo de engano,
É pior que qualquer desatino:
É o esquecimento.

04/04/2016

AVISO

Não vamos falar em despedida,
Em desamor
Deixemos que caminhem os dias
Sem que a gente se fira
Fizemo-nos em alegria
Continuemos em vida
Fará parte da minha saudade.
Te agradeço,
Não por adeus ou nobreza,
Mas por ter dado a mim de mim e de ti.
Não foi assim tão difícil chegar,
Obrigada por sempre vir
E realmente estar.
Estará em mim.
Beijos.

26/03/16